segunda-feira

30ª telha

Falávamos em frente a uma chávena de café e a conversa ia-se enovelando. Volta e meia parecia surgir um ondulado vermelho nas frases e puxava-se do corrector clicando em cima da ideia.
Os blogues servem para falar de gentes. Pessoas com sentimentos. A quem pomos almas e corações. Que têm lágrimas e risos. Que se afogam ou trepam mais alto. Os blogues vivem ou morrem com sentimentos. Criam-se vidas, entrecruzam-se algumas, fingem-se outras. Os blogues ou são a transparência viva ou a fuga imaginativa dela.
Mexe-se mais uma vez o açúcar há muito derretido na chávena. As letras acabam por guardar o que se nos escapa da memória. Valha-nos isso ou o gosto dependente do que ainda nos dá prazer.

domingo

29ª telha

Sobre o perdão, o verdadeiro dos tempos quaresmais ou outros que tais, ficam-me as dúvidas de espírito e os amargosos de língua.
As intenções humanas, faladas ou escritas, dariam uns quantos versículos e mais umas quantas homilias, mas não trazem novos ensinamentos.
As tréguas, mão esquerda no chão mão direita no ar a acenar bandeira branca, só me lembram que estes passos substituem outros passos mas o caminho é o mesmo.
Quando encontrará o ser humano uma paz redentora dentro de si mesmo?

[com esta fecho o dia pois a telha não leva a água que ainda vislumbro no boletim da semana]

quinta-feira

28ª telha

Fala-se de sorte como se fosse a única coisa a substituir o cordão umbilical do recém-nascido. Que tenha muita sorte, dizem de olhos melosos e coração crente!
E a sorte, madrasta por natureza, tem o capricho de muitas vezes escolher quem não precisaria dela.
E com a sorte ou sem ela, vai-se virando as páginas do dia-a-dia. Uns dias pensa-se que um rasgo de felicidade é o cumprimento cabal da sorte. Outros dias, por cabeçadas e derrapagens, culpa-se a puta da sorte.
Uns toda a vida se queixarão da sortinha que os bafejou, outros negarão sempre que ela lhes bateu à porta, outros nem chegarão a ter noção do que desperdiçaram.
Por mim, que muitas vezes penso nela, desejo apenas, aos que chegam a este mundo sem o pedirem, muita saúde e discernimento.

domingo

27ª telha


Da lei da atracção tem-se escrito mais do que já gastei em papel higiénico no local de meditação. Os livros sobre o bem-estar e de auto ajuda, não fossem tão ásperos, teriam outra serventia. Ponto final.

Os croquetes que a minha cadela deixa como obeliscos no cimento atraem moscas em barda. Elas rodopiam em volta das almôndegas como se não houvesse mais nenhum ponto no universo capaz de captar os seus desejos e satisfazer as suas carências. Outro ponto final.

Da tia Alda, na sapiência dos seus fartos cabelos cor de prata, lembro-me bem da sua teoria liberta com dois pontos e respectiva exclamação.
Não é merda mas cagou-a o cão!”

segunda-feira

26ª telha

Pegamos em fotos, objectos, memórias da meninice e vamos recuando em slides como se fizéssemos uma lenta marcha-atrás, num filme visto várias vezes, até chegar a preto e branco.
Recordo uma boneca. Perfeita, como são as bonecas e só as bonecas. Longos braços e pernas maleáveis. Rosto pequenino, olhos pestanudos e de pentear os loiros cabelos. Corpo esbelto de ideal de boneca, acompanhado do elegante sorriso, perpétuo como só as bonecas podem ter.
Mas o que me lembro melhor é que rodava a cintura, num voltear inteiro. E a cabeça e tronco contorciam-se até ao impossível.
Esta capacidade de jogar em meio círculo a cintura encontra-se afinal tantas vezes nos humanos. Sem ser malabarismo de circo torna-se arte.
Por dentro, a minha boneca e os contorcionistas de cintura têm algo em comum: são ocos.

sexta-feira

25ª telha


Afrodite e Adónis.
Fomos desencantar um vaso de cerâmica em conversas calmas de um jantar partilhado. Entre garfada e um gole, as azeitonas a sorrirem muito, surgem sempre mitos. Muitos. E deuses. Gregos.
Há casos assim: histórias de interacções entre deuses, semi-deuses e mortais.
Adoro histórias, E recapitulo, como se fosse buscar às origens das culturas, que o Amor conquista tudo! Belo, se engolido com grelos.
Eros toma conta na conversa, senta-se na borda do prato, ri-se enquanto segura uma seta que cairá solteira no copo. Não emite uma palavra. Crê que o silêncio no Olimpo trará as respostas no Tempo.
Dias, meses, anos. Que interessa? Deuses e humanidade redundam quase sempre em finais inesperados ou anteriormente previstos.
Da argumentação, tão cara aos gregos, ficou uma frase final, em modos de sobremesa: “Azar da pila!”

segunda-feira

24ª telha


A mentira é uma teia. A mentira é um conjunto de fios, finíssimos, minúsculos, tecidos com uma arte de raios e espirais impressionantes. A aranha ou aranhão têm um trabalho árduo e persistente. E uma vez começada, essa trama elaborada, contínua, fio após fio, círculo entrelaçado após círculo para segurar o anterior, existe com uma finalidade apenas: a sua sobrevivência.
A mentira, como os vários tipos de fios de seda da teia, pretende que a presa ali fique encapsulada, seja qual for a sua finalidade.
A evidência da vida, mesmo nas metáforas, é que um dia a teia e a mentira rompem. E a aranha, o aranhão ou o aranhiço terão de voltar a produzir mais fios, talvez cada vez mais resistentes.
E quedo-me a pensar: quanto suará uma aranha?