sábado

22ª telha


Desde que me lembro que os portugueses são considerados somíticos nos afectos através de palavras. Era assim e chamavam-nos reprimidos. Só mesmo esbanjadores fomos sempre para os estrangeiros, a quem abríamos sorrisos, portas (e em certos casos qualquer coisita mais), incluindo aprender em todas as línguas manifestações ternurentas. Somos um povo afável.
O gosto de ti servia em tempos para todos os sentimentos mais intensos, íntimos ou partilhados. (E que tinham conteúdo.)
Os tempos e ventos mudam, é certo. A mudança é tão imperiosa como abrigarmo-nos da chuva batida. Dos oito para os oitenta vai uma gota de orvalho.
Agora atiram-se abraços e beijos, gosto-tes muitos, amo-tes muito, adoro-tes muito (com pontos de exclamação ou abreviaturas interessantes) como quem lança perdigotos em discussão acalorada, mesmo que nunca se chegue a conhecer bem o alvo.

quarta-feira

21ª telha

Descobri algo mais. Após sonho esclarecedor, com visitas a outra dimensão, descortinei que os seres humanos nunca saíram da sua condição de rastejantes.
Virá douto falador, porventura, um dia demonstrar a teoria ou não.
A maioria é rasteira ou prega rasteira. Uma boa parte ondeia. Alguns sibilam. Visualizei também covis e habitats...
Serpenteando, prostrando-se ou ciciando só vi que não subiram na teoria da evolução da espécies.
E caso tivesse ficado em dúvida, em mim comprovo, pois hoje ganhei uma nova escama.

segunda-feira

20 ª tellha


Na sabedoria popular, de máximas que vamos dando com intenção de acudir aos outros, diz-se por aí que quando se fecha uma porta logo se abrirá uma janela.
Na minha teoria, mais líquida, será assim: quando se fecha uma torneira logo surgirá, mais dia menos dia, uma bica.
E lamento-me não ter faro para nascentes puras como um enólogo tem para bom vinho.

domingo

19 ª telha

As pessoas nascem sempre com uma aptidão ou um dom muito especial. Por isso se afirma que todo o ser é único e que não há duas folhas iguais em toda a natureza.
Eu tenho uma qualidade em particular: não há cão abandonado, lazarento, escorraçado, faminto de mimos e de olhar doce que não me cative imediatamente. E nesse reconhecimento imediato crio laços. Há algo inexplicável que nem lógicas nem as teorias explicam. Provavelmente também não chegaria lá em divã de psicologia nem em buscas existenciais.

Os dois verdadeiros cães que me entraram em casa __daqueles que andam mesmo em quatro patas __ foram os únicos que até hoje retribuíram em duplicação o amor e nunca morderam a mão que os afagou e lhes deu de comer.

quinta-feira

18ª telha


Sentei-me e esperei o que saltaria no último grito em tecnologia pendurada em parede.
Sem aviso saltaram enfoques e projectos, grelhas e parcerias.
Qual tontura em quebra de tensão marcharam siglas e percentagens.
Entre uma inspiração e respectiva expiração notei que este planeta não é o meu.
Cospem-se teorias, incluindo as próprias, como caroços de tangerina. A vida não melhora, as pessoas não se tornam mais felizes, mas diz-se que são as ideias que fazem rodar o globo.
Por um segundo fechei os olhos e o mundo chegou a parecer um pião.

terça-feira

17 ª telha


Destas coisas de amores,
[ porque o pessoal está fartinho de défices, de casos dúbios de justiças, das porcarias das altas figuras da sociedade, dos jogos de futebol mal arbitrado e outros cabeçalhos]
gosto de escrever só por escrever.
E as acomparações são melhores que parábolas em tempos de fariseus.
[pensando melhor, os fariseus e as parábolas continuam contemporâneos, porras]
Pois estas coisas de amores são a bem dizer como cascalha em lareira.
Fria no início junta-se-lhe uma pinhita, das novas e plena de pinhões de esperanças. Se o ambiente estiver propício pega em segundos.
Dá meia dúzia de estalidos mostrando o seu poder cantante. O calor, porque não é de madeira nobre, é efémero e enganador, ainda nem a pinha ardeu todinha.
(E depois?)
Depois não há mais acomparação.

Pega na merda da pá e tira é depressa de lá as cinzas que empestam a casa toda!

quarta-feira

16ª telha

Soltaram-me um tem de ser que me aterrou no estômago como murro à falsa fé.
Sorrio mas os dentes permanecem cerrados.
[Já deixou de ser hipocrisia o que me cobre há muito tempo.]
Violentada no querer. Com medos esculpidos em décadas.
[Merda em que nos enterramos todos os dias.]
Cambada de merdas que nos caem no colo e nem podem ser sacudidas como cascas de alcagoitas.

[Levanto-me porque tem de ser, como, bebo, sento-me na sanita, lavo todas as partes, ponho-me perfume, aliso-me, trapo-me, sapateio, trabalho, falo, ouço-os e sigo na corrente, porque tem de ser.]

Ainda tenho de encontrar a palavra certa para explicar só numa palavra este desprezo pelo que tem de ser.

terça-feira

15ª telha


E o mundo da fantasia, perguntam-me.
Fantasia é assim uma espécie de livro de culinária só ilustrado com fotos a brilhar num papel caríssimo. Os pratos na tentação. A sedução ali exposta. Tudo apresentado de forma única com toque de grande chefe.
Salivas com os olhos, emprenhas de aromas, afias apetites, engendras condimentos e estendes os garfos.
Esquecemos que o acto da prova fecha o livro naquela página.

segunda-feira

14ª telha


Gosto dos três cantos do meu quarto que olho quando deitada de costas.
Dão-me a sensação que a parede de trás ainda não saiu de lá, mas essa é uma das poucas coisas na vida que eu ainda penso saber onde está.

sexta-feira

13ª telha


As relações amorosas são como os pares de meias.
A estrear são almas gémeas, perfeitas, adaptadas voluntariamente ao pé que as calça. Mas tudo se desenvolve a partir da primeira lavagem. Uma encolhe mais que a outra ou perde a cor. Depois vem o problema do elástico. A seguir uma rompe no calcanhar. A outra, para contrariar, há-de fazer buraco no dedo grande.
Mas o maior problema é que algures, nesse percurso, uma delas há-de sempre perder-se.
Pensa-se que a solução estará em atá-las uma à outra, desde a primeira lavagem e antes de atirá-las para a máquina, como um casamento. Desenganemo-nos. Uma das meias, quando menos se espera, há-de misteriosamente desaparecer.
Há circunstâncias em que nem as molas emparceiradas e da mesma cor seguram casos bicudos.


quarta-feira

12ª telha


Sobre amores e ódios já se escreveu o muito e o pouco. Tratando guerras e paz apareceram mais filmes que batalhas. De paixões e desamores criaram-se baladas intemporais.
Mas o despeito, esse, quando se transforma em tornado, consegue arrasar montanhas.